Aluar: o segredo do flúor na Patagônia
Texto: Daniel Wizenberg
PUBLICADO: 4-DEZ-2022
Na Patagônia argentina, uma das dez maiores empresas do cone sul e a maior fábrica de alumínio da América Latina é acusada de contaminação por flúor. A empresa nega, mas não fornece provas e o Estado não a controla.
Centenas de milhares de turistas visitam todos os anos Puerto Madryn, uma cidade de 120 mil habitantes na província de Chubut, ao norte da costa patagônica argentina, para ver baleias, pinguins e leões-marinhos. Mas a cidade não vive principalmente do turismo, mas sim da Aluar, a maior fábrica de alumínio da América Latina. As chaminés dessa empresa nunca param.
Há 30 anos, um prolixo engenheiro mecânico de 82 anos, chamado Carlos Moreno, denuncia que desses tubos sai mais flúor que o permitido: “por isso tanta gente adoece em Madryn”, diz. A fábrica de Aluar fica em frente ao mar e ao norte de Madryn, basta o vento soprar ao sul para as pessoas respirarem o que sai das chaminés.

As provas apresentadas por Carlos em 1997 perante a justiça provincial (semelhante à justiça estadual) não foram suficientes para um tribunal local que as julgou. Entre os documentos apresentados estavam os relatórios elaborados pela própria Aluar: ainda estão numa pasta que Carlos Moreno carrega numa maleta de couro verde aonde quer que vá, como se fossem as chaves da sua casa ou a sua carteira. Os papéis são de 1991 e neles a empresa reconhece que, conforme a medição se aproximava da fábrica, a presença de flúor no ar aumentava. Os diretores da empresa foram absolvidos e não pagaram multas. Desde então, os números das medições de impacto ambiental são publicamente desconhecidos.
Carlos estudou engenharia mecânica em La Plata, capital da Província de Buenos Aires, e chegou a Madryn há quatro décadas para trabalhar em uma empreiteira em Aluar: “como o flúor serve para tornar a água potável, antes se pensava que não era contaminante, ao contrário, acreditavam ser extremamente bom”, explica.
Segundo Carlos, demitiram-no porque começou a questionar o impacto ambiental da Aluar e, desde então, o flúor é a sua obsessão. Comentou quase todos os vídeos do Youtube relacionados à empresa, criou um grupo no Facebook sobre o câncer em Madryn, usou a "banca del vecino” (banco do cidadão, uma ferramenta para denunciar, fazer propostas de um jeito hábil usada no início das sessões) para denunciar a Aluar no Conselho Deliberativo (o parlamento local), produziu um programa de rádio para informar as novidades sobre o caso, fez camisetas com dizeres enormes "Não ao flúor", dá sermões na praça central de Madryn com megafones e alto-falantes. Busca justiça, mas também vingança.
– Por que faz isso, apesar de estar tão sozinho na luta por tanto tempo?
–Porque me deixaram na miséria.

Selfie com baleias em Puerto Madryn. Foto: Pablo Linietsky
O filme do flúor
Com o barulho das turbinas de Aluar começa “El encanto de la mosca” (O encanto da mosca), filme estreado este ano por Octavio Comba, nascido em Madryn, e Lucía Levis Bilsky, de Buenos Aires. Por enquanto, só pode ser visto em cinemas públicos ou nos festivais onde é exibido. A mosca é como o dinheiro é coloquialmente chamado na Argentina.
O filme de Lucía e Octavio consegue documentar com depoimentos as denúncias de Carlos. Como a fala de três pessoas que faleceram durante a pandemia, logo após serem entrevistadas: um médico que trabalhou na Aluar e escreveu um livro sobre como escondem informações, uma ex-deputada que colheu informação de pacientes com câncer e fluorose, um ex-trabalhador que confirma que “Aluar contamina e todo mundo sabe”.

Quase um ano após ter sido lançado em Buenos Aires e em outras cidades do país, o filme pôde ser visto pela primeira vez no palco dos acontecimentos. Mais de 300 pessoas comparecem no auditório da Fundação Namuncurá. Depois do filme, quase todas ficam para o debate, cerca de vinte levantam a mão e um microfone se aproxima, são de diferentes idades e classes sociais e dizem algo que nunca disseram em público: “Trabalho em um centro de pesquisa e se você trabalha em algo relacionado à Aluar, não te dão a bolsa, até nossos móveis foram doados por eles”, “Não entendo como não nos organizamos para deter isto”, “A empresa controla o governo municipal e provincial, não o contrário”.
Carlos tomou a palavra várias vezes: "Há um problema mundial que é a fluoretação da água potável, mas o início do problema é o alumínio e em Madryn temos a única fábrica disso no país", disse em uma das intervenções . "O problema é a produção eletrolítica do processo Hall-Heroult, eles têm de dissimular os efeitos do flúor, devido à essa forma de fazer alumínio", disse em outra. "Para salvar o planeta das mudanças climáticas, devemos reduzir os gases fluorados da estratosfera", falou pela terceira vez.
O anfitrião, presidente da Fundação Namuncurá, Lautaro Merino, conta que sua organização fornece alimentação e educação a centenas de crianças analfabetas e possui uma rádio que é uma das mais ouvidas da cidade: por isso o sucesso da convocação para a exibição do filme. Uma das primeiras vezes em que a denúncia de Carlos repercutiu foi quando essa rádio lhe deu espaço. Desde então, diz Lautaro, a Aluar deixou de fazer doações para comprar alimento. "Isso porque fizemos uma oficina com as crianças para identificar suas principais preocupações e surgia a Aluar, não podíamos ficar sem falar nada”.
– A preocupação deles é a falta de trabalho?
– Não, veja, cresci aqui e quando se falava de Aluar era porque seu pai trabalhava ali, mas, para essas novas gerações, a Aluar é um problema ambiental, e isso graças à coragem de poucos que tentam colocar isso na ordem do dia. Isso porque em toda a província de Chubut vive o mesmo número de pessoas que em um bairro de Buenos Aires, e temos muitos recursos naturais, mas somos pobres, então as crianças não veem mais a Aluar como uma esperança. Ajudou a cidade, mas em detrimento da nossa saúde e da nossa paisagem.
Em Chubut, ficaram famosas duas grandes mobilizações sociais contra os megaprojetos extrativistas de mineração: o “Não à mina” em Esquel e o “Chubutazo”, em dezembro de 2021, em Trelew, a poucos quilômetros de Madryn. Para Lautaro, o que aconteceu na apresentação de El encanto de la mosca (O encanto da mosca), “oxalá seja como aconteceu no início com as assembleias de bairro”, que deram origem a essas mobilizações.
Sorrisos envenenados
O flúor faz parte da nossa vida. É uma substância perigosa, um gás irritante, amarelo claro a esverdeado, que cheira mal, mas raramente o vemos ou sentimos. É o mineral que torna o esmalte dos dentes mais resistente às bactérias toda vez que os escovamos, mas também é o mineral que ajuda a purificar a água, a inflamar foguetes, produzir antibióticos, anestesiar pessoas, isolar a eletricidade e fazer televisores de plasma. O flúor se chama assim porque ajuda outros minerais a fluir, por exemplo, o ferro.
Para a Academia Americana de Pediatria, o flúor não causa câncer, como afirma Carlos. No entanto, uma exposição em excesso ao ar ou seu consumo na água, dizem diversos estudos científicos, provoca alterações “na morfologia e na bioquímica cerebral, afetando o desenvolvimento neurológico dos indivíduos e, por conseguinte, das funções relacionadas aos processos cognitivos, como a aprendizagem e a memória”. Na China, 16 milhões de pessoas expostas à poluição do ar pelo flúor da produção de carvão apresentaram sintomas de fluorose: “Os ossos tornam-se frágeis e quebradiços. Nas suas manifestações mais graves, a fluorose esquelética é muito incapacitante: os ligamentos se calcificam, perde-se massa óssea e surgem problemas neurológicos pela compressão da medula”.
Raul Montenegro, diretor da Fundação para a Defesa do Meio Ambiente (FUNAM) e vencedor do prêmio Right Livelihood, conhecido como o Nobel Ambiental, explica existir três fontes de contaminação por flúor: a aquífera, o uso antrópico e o descarte das indústrias.
A fábrica de alumínio Aluar. Foto: Pablo Linietsky
A contaminação aquífera é a mais importante pela quantidade de locais onde ocorre: naqueles onde essa água é usada para se tornar potável, ocorre naturalmente devido às características da terra e em geral onde há flúor, há arsênico. O uso antrópico do flúor, que para Montenegro é a contaminação mais grave por ser pouco problematizada, refere-se ao tratamento da água com flúor ou quando é usado, por exemplo, em pastas de dente: segundo o cientista "de maneira desmedida e sem muita ciência por trás”. A contaminação pelas indústrias ocorre quando uma empresa descarta flúor no meio ambiente, como é o caso de fábricas de materiais de teflon que despejam nos rios ou das fábricas de alumínio, como a Aluar, que descarta pelo ar.

Montenegro destaca que “os efeitos são sempre multicausais, uma pessoa pode adoecer porque bebe água contaminada por uma coisa e respira ar contaminado por outra” e isso dificulta a determinação de maneira linear do impacto de algumas atividades. “Quase nunca há apenas uma única fonte.”
– Você obteve informação específicas da Aluar?
– Sim, é quase um movimento unipessoal do engenheiro Moreno. Mas aí, pela própria natureza da produção de alumínio, há descarte de flúor e há risco. Acontece como ocorreu em uma empresa de energia em Córdoba, alguns setores internos pressionam para que isso tenha status público, mas acabam optando entre ter trabalho com contaminantes ou não ter trabalho. Às vezes, os sindicatos, por exemplo, preferem continuar trabalhando e receber mais por atividades perigosas. Ou seja, às vezes as comunidades são cúmplices do que acontece. É como se dissessem "é o risco que você precisa pagar para ter trabalho".
Por que não conseguimos encontrar dados concretos sobre essa contaminação?
– Por causa da relação entre governos e empresários. Em geral, as empresas pressionam que, se forem obrigadas a fazer mais controles, vão reduzir pessoal ou investimentos.
Orgulho argentino
Aluar significa "Alumínio Argentino" e vem de outra época do país. Nasceu em 1971, quando a Argentina se sentia uma potência mundial, antes que a ditadura, iniciada em 1976, desindustrializasse o país. Hoje a Aluar produz quase meio milhão de toneladas de alumínio por ano, dos quais exporta 70%, e emprega mais de duas mil pessoas diretamente e mais várias milhares indiretamente. Fatura em média mais de 1 bilhão de dólares por ano.

72% do pacote acionário da Aluar pertence à família Madanes Quintanilla, que também é proprietária da central hidrelétrica Futaleufú e da fábrica de pneus Fate. Os jornalistas Tomás Lukin e Santiago O'Donnell denunciaram no livro Argenpapers que os Madanes tiveram "fideicomissos e sociedades offshores nas Ilhas Cook, Bahamas, Ilhas Virgens e no Panamá, com conexões com contas na Suíça". A fortuna dos Madanes, segundo a Forbes, é de pelo menos 1,4 bilhão de dólares. Ou seja, uns 500 milhões de dólares a mais que o orçamento para 2022 do governo da província de Chubut, encarregado de controlar a empresa.
Nos últimos meses, escrevi para quinze diferentes diretores e funcionários da Aluar:
Estou fazendo um artigo sobre a possível contaminação por flúor pela Aluar. Eu vi no site da empresa que fazem um monitoramento do ar, mas não consegui acessar os números do mesmo. O motivo do contato tem a ver com a solicitação de acesso às medições e também, se possível, de uma entrevista com o senhor ou com outro representante da empresa que possa fornecer a informação e a posição da empresa sobre essa questão.

Apenas María Elena Lizurume, Coordenadora Principal de Relações com a Comunidade e filha do ex-governador José Luis Lizurume, respondeu:
Atendendo ao seu interesse em esclarecer o tema, posso lhe informar e ratificar por meio desta que nenhuma contaminação por flúor é causada pela Aluar. A esse respeito, declaro que a Aluar cumpre devidamente as normas vigentes em matéria de controle ambiental no monitoramento do ar, reportando-se às respectivas Autoridades de Fiscalização locais (Secretaria de Ecologia e Proteção Ambiental do Município de Puerto Madryn), provinciais (Ministério do Meio Ambiente e Controle de Desenvolvimento Sustentável de Chubut) e nacionais (Rede Federal de Monitoramento Ambiental do Ministério Nacional do Meio Ambiente), onde se encontram dados sobre esse assunto. Sem mais nada para informar, saúdo-o cordialmente.
Diante da insistência de dados concretos, não responderam mais a nenhum e-mail.
Desinformação oficial
O subsecretário de Fiscalização e Recomposição do Ministério do Meio Ambiente da Nação, Jorge Etcharrán, afirma que, por jurisdição, quem deve controlar que a empresa não contamine são os governos provinciais e locais.
– Mas é normal que quem meça o impacto ambiental seja a própria empresa e que os dados não sejam públicos?
–Normalmente, a empresa deve entregar seus próprios relatórios, embora os governos tenham o direito e, em algum momento, a obrigação de auditar isso.
- Vocês não têm a informação que a empresa menciona fornecer e os governos provinciais e locais não respondem, não é possível obrigá-los a informar em nível nacional?
–Para se ter uma ideia, na pandemia tive de substituir manualmente, por telefone, a informação sobre os resíduos patológicos porque a informação não fluía. Há dois limites, por um lado, este é um país federal, com jurisdições marcadas, e, por outro, a questão ambiental é relativamente recente, os Estados provinciais e locais não têm o hábito de informar e controlar, apesar disso ter melhorado nos últimos cinco anos graças à aprovação de normas nacionais e internacionais, como o Acordo de Escazú, e também porque as consequências ambientais são cada vez mais visíveis.
– Vocês não podem atuar de ofício no caso da Aluar, então.
-Assim é. Atuamos quando há um conflito interjurisdicional, que neste caso não existe, ou quando há uma denúncia. E, neste caso, ninguém denunciou nada ao Ministério do Meio Ambiente da nação.
Para Raúl Montenegro, esta forma de lidar com os Estados "é primitiva e está cheia de ruídos" e tem a ver com o fato de "na América Latina, em geral, mas na Argentina, em particular, existir uma regra geral na qual o Estado delega implicitamente a gestão ambiental ao protesto e à resistência social, o estudo epidemiológico sério, por exemplo, é feito apenas em decorrência dessa pressão, suponhamos no caso de Aluar, se a pressão popular tivesse sido sido forte, em pouco tempo haveria uma avaliação independente da morbimortalidade ligada aos fatores de risco”.
Para fazer esse estudo sério, segundo Montenegro, o Estado precisa escanear as amostras biológicas e no meio ambiente, mas ainda assim “neste caso há um risco óbvio e esse risco deveria bastar para que a fábrica não estivesse ali”.
A imensa fábrica da Aluar. Foto: Pablo Linietsky
O problema são os dados
Julio, de 40 anos, sempre quis trabalhar em Madryn. Um dia veio de férias e aproveitou para deixar o currículo. Trabalhou na Aluar por dois anos na área de controle de qualidade e controle ambiental. Foi demitido, conforme denunciou, por questionar a manipulação de dados sobre o impacto ambiental registrados pela empresa: “por mais que me pagassem, não podia me fazer de bobo”.
–Como contaminam com flúor?
–Todo o processo de eletrólise para fazer alumínio, com tudo o que agrega, como a fluorita, o principal produto de resíduo é o flúor. Ainda por cima, as cubas onde se faziam isso antes não tinham tampa, as pessoas que ali trabalhavam tinham 50 anos, e pareciam ter 80: um calor infernal, eletromagnetismo. Depois, colocaram as tampas, mas mesmo assim falta controle.
–E como manipulam a contaminação?
– Informam o que mais lhes convêm, não mediam o tipo de particulado que entra nos pulmões, recebi formulários incompletos ou não responderam aos meus e-mails porque são evidências, medem oito lugares e selecionam os quatro mais baixos, veio um chefe certo dia e disse para eu não divulgar os dados elevados, porque estávamos em época eleitoral.
– Essa contaminação é inevitável? Nesse caso, qual é o custo para evitá-la?
–Não precisa fechar a fábrica, eles têm dinheiro, podem investir, mas é preciso exigir. Por exemplo, para tratar resíduos há apenas uma fábrica e quando chove tudo isso vai para o mar e não é recolhido. Há óleos transformadores, mercúrio, alcatrão tóxico, máquinas, tudo isso está enterrado e vai acabar se infiltrando no lençol freático e na água que consumimos.
-E por que não se regulariza?
- Porque ninguém exige. A Aluar é uma fábrica dos anos 70 com muita tecnologia antiga, foi preciso ter um processo na época para que as pessoas não voltassem para casa com a roupa cheia de alcatrão. E quando denunciei, a encarregada municipal do meio ambiente me convocou, me fez passar sem me registrar na mesa de registro “para me cuidar” e me contava que os próprios servidores municipais filtravam para a empresa todas as denúncias recebidas. Ela me confessou que é complicado auditar a Aluar.

–Que motivo lhe deram para demiti-lo?
– Que estava gerando um ambiente de trabalho ruim: “você não pode informar as coisas que informa”, disse meu chefe. E eu respondia que era meu trabalho lhe passar esses dados.
Apesar de tudo isso, Julio mantém a esperança de voltar a trabalhar na Aluar "se um dia a empresa regularizar sua situação". Como não encontrou trabalho em Madryn, teve de ir a Buenos Aires. Diz ter provas tiradas da empresa, mas não quer mostrá-las porque assinou acordos de confidencialidade. Ele as apresentou a um promotor, lembra, "mas ele não fez nada e me deixou exposto". Ele se arrependeu de denunciar: "As pessoas não se importam, ninguém tem culhões nem capacidade para enfrentá-los, fiz o eticamente correto, mas desisto de continuar algo que não vai chegar a lugar algum".
Tudo o que acontece em Puerto Madryn, desde ver pinguins até assistir a documentários, tem um zumbido de fundo. É mais audível nas manhãs de domingo, quando quase não há tráfego. É a cortina de som da cidade, como se em algum lugar distante e em loop, um avião estivesse sempre pousando. São as turbinas Aluar, um barulho que se ouve, mas nem todos querem ouvir.
Milhões de dólares por ano, fatura Aluar
Toneladas de alumínio por ano produzidas pela Aluar
Percentual do alumínio que produz é exportado
Funcionários trabalham diretamente na Aluar